ALBERTO SARAIVA, POR ELE MESMO

Desenhar e escrever sempre foram duas constantes na minha vida. A primeira me levou a ser arquiteto; a segunda, a fazer incursões em textos jornalísticos, a escrever (muito!) nas redes sociais, fossem artigos sobre política e economia, fossem crônicas ou pequenos contos. E até poemas, ainda que bissextamente, digamos.
E também peças de teatro, quando eu subi ao palco, em experiências indizíveis; o teatro é mágico, bem o sabemos.
Escrever um livro, no entanto, é o coroamento do escritor. Um trabalho de muito fôlego: horas e horas compondo mentalmente cada cena, muitas outras digitando, revisando, modificando, complementando, às vezes abandonando tudo e voltando a reescrever do zero. Uma autocrítica permanente, num trabalho solitário de pensar como o leitor gostaria que a trama corresse e ocorresse, mas buscando sempre a possibilidade de surpreendê-lo na próxima cena.
E para isso é necessário criar personagens, que são como parte de você mesmo. E eles têm que contar uma história com princípio, meio e fim, criar conexões dentro do enredo, ganhar vida, corpo, alma e voz na imaginação do leitor, e com este criar um certo tipo de vínculo, capaz de perdurar para muito além da leitura de um livro.
Em Os Filhos do Vento tudo isso aconteceu, mas com algumas peculiaridades. Não precisou de roteiro para ser escrito. Nunca teve sinopse. E eu, sinceramente, não tinha a menor ideia para onde a trama iria, menos ainda como terminaria. Ela foi se autoconstruindo. Organicamente. As palavras “saltavam” do teclado, os desdobramentos vinham na sequência, e as consequências tinham que ser amarradas adiante.
A prova disso é esta segunda edição, totalmente revisada, e ampliada em mais um capítulo. Ela chega com novos personagens e novas situações, que surgiram pela sensação – apontada em comentários por alguns leitores da 1ª. Edição -, que o livro terminou “rápido demais”, e que eu precisava fechar algumas “pontas soltas”. Eles tinham razão, e o livro volta com um novo “Fim”. Definitivo, espero.
Se as veias de desenhar e escrever se me apresentaram desde a infância na Ribeira, em jornaizinhos ilustrados e rodados em mimeógrafos, tempos depois em reprodução xerox nas escolas por ande andei, a graduação em Arquitetura, por seu turno, demorou bastante.
Como não tinha completado o 2° Grau, fiz o Supletivo num certo dezembro, o vestibular para a Faculdade de Arquitetura da UFBA no janeiro subsequente e, inacreditavelmente, passei. Aos 37 anos, eu finalmente estava ultrapassando a porta de entrada do 3° Grau.
Estudar numa universidade federal é coisa para rico, ou para quem tem uma família por trás, para financiar seus sonhos e planos; aulas nos três turnos, no meu caso em 8 faculdades diferentes, espacialmente distribuídas em 3 campi. Coisa para quem tem todo o tempo do mundo – e eu não tinha.
Embora não tivesse nenhum problema com desenho arquitetônico, perspectiva, planejamento e outras disciplinas típicas do Curso, as dificuldades por não ter feito regularmente o 2° Grau logo se apresentaram: tive que ser “apresentado” a funções, integrais e derivadas; as aulas de Matemática e Física eram um terror, e as de Estatística iam pelo mesmo caminho.
Some-se a tudo isso a necessidade de trabalhar, de pagar as contas, do viver uma dura realidade em meio a um sonho, até então sempre adiado.
Perder disciplinas por conceito, ou por faltas, virou praxe. A ponto de eu ficar ameaçado de ser jubilado, ainda no 4° semestre, por ter sido reprovado 3 vezes em Física, 2 delas por faltas. Pudera: como assistir 10 horas de aula por semana, de uma só disciplina? A situação se resumia a fazer de novo, pela 4ª vez, e se perdesse estaria fora. Jubilado. Expurgado.
O que fiz, então? Outro vestibular, para limpar meu histórico, e driblar as 3 disciplinas perdidas. Passei novamente, e desta vez dentro da primeira metade dos 120 aprovados – afinal, já estava mais intimo das matemáticas...
E encarei Física de frente. Derrotei-a. Fui eliminando matéria após matéria, perder por faltas continuava “normal”, mas fui liberando o fluxograma, aos trancos e barrancos. Verdade que por várias estive bem perto de desistir, a necessidade de ganhar dinheiro era implacável. Por 2 vezes, sozinho na praia de Ondina, até 7, 8 horas da noite, eu e meus botões conversamos muito. Muito, mesmo.
Eu continuei. Por mais oito anos, comprovando que a resiliência passou a fazer parte do meu cardápio. Para sempre.
E lá fui eu, mais velho que alguns professores, continuar a minha saga. Vencendo distâncias e disciplinas, greves que eu não queria, mas que sem dúvida me davam mais tempo livre para trabalhar. Em compensação, adiavam minha conclusão do Curso. E como adiaram.
Até líder estudantil me tornei, na defesa do retorno às aulas. No último semestre, que nunca terminava, só me restava uma disciplina: a famigerada (pra mim) Estatística II.
Consegui concluir. Com um atraso de um ano e meio, como consequência de um semestre anulado, e dois adiados. Por greves. Semestres que foram recuperados em sequência, sem intervalo entre eles.
Data da formatura chegando, convites distribuídos, eu em recuperação de Estatística, Orador da Turma eleito por aclamação, imaginem o estresse.
Mas deu certo, graças à paciência de um professor, que esperou - por mais de três horas! - que eu concluísse a prova. Jessé Acioly, um nome que nunca esquecerei. Ele me deu uma aula magna do quanto se pode ajudar um aluno em apuros: não me deu dicas, nem facilidades outras, mas me deu o tal de ‘todo o tempo do mundo’ que eu achava que não tinha. Tive naquele dia.
E lá fui eu, levando meus cabelos brancos, minha resiliência e meu agradecimento ao professor Jessé, para o auditório da Reitoria da Universidade Federal da Bahia.
Na foto, eu aos 47 anos, fazendo meu discurso de Orador. Ser o decano da Turma e escrever razoavelmente bem mostraram sua serventia.
Finalmente.